Novo Ensino Médio paulista: aprofundamentos curriculares ou aprofundamento da desigualdade?



Grupo Escola Pública e Democrática (GEPUD)

18/08/2021

A controversa Lei n. 13.415 de 2017 que alterou toda a estrutura do Ensino Médio no Brasil começa a ser implantada nas diferentes redes de ensino brasileiras. Se já não bastassem todos os problemas inerentes a essa reforma: a formação reducionista que proporcionará, a falácia da escolha dos itinerários, as incertezas que acarreta para os docentes etc., as formas pelas quais as diferentes redes estaduais implementarão tal reforma podem trazer ainda mais preocupações com relação à organização dessa etapa da Educação Básica.

Esse, sem dúvida, é o caso da rede pública estadual paulista. Em meio à pandemia de Covid-19 que afastou grande parte do público atendido e os professores das escolas, dificultando a comunicação entre a comunidade escolar, a Secretaria da Educação chamou os alunos para manifestação de interesse com relação ao itinerário formativo que deverá cursar a partir de 2022. Assim, afastados dos pares e privados da possibilidade de refletir, discutir e tirar dúvidas sobre o assunto, os estudantes de em média 15 anos deveriam escolher entre os 14 diferentes itinerários apresentados no “cardápio” da rede estadual.

Embora a Secretaria da Educação tenha respondido às críticas sobre a precocidade de tal escolha alegando que ainda não se trata da definição da atuação profissional, visto que o estudante poderia fazer outras opções no futuro, há que se considerar que a escolha de um itinerário formativo vinculado a uma área do conhecimento, em tão tenra idade, deixa de fora outras perspectivas, e isso, é claro, terá desdobramentos no futuro desses jovens.

No entanto, é necessário ressaltar que a maneira com que a rede paulista está implantando o Novo Ensino Médio não permite escolhas ao estudante. Nesse momento, os jovens fazem apenas uma manifestação de interesse, com base na qual a escola deverá planejar os itinerários formativos a serem oferecidos. Como é impossível que uma escola ofereça todos os itinerários formativos, vários estudantes precisarão abrir mão da opção feita para se ajustar entre as possibilidades oferecidas em sua escola, ou – o que é ainda pior – mudar de instituição. A falácia da escolha por parte dos estudantes chega ao extremo se considerarmos que no estado de São Paulo há muitos municípios com uma única escola de ensino médio, portanto, sem oferta adequada de opções aos jovens.

Vale lembrar que a rede paulista optou por chamar os itinerários formativos de “aprofundamentos curriculares”, o que envolve as áreas de Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza e Ciências Humanas e diferentes combinações entre duas dessas áreas, além de opções que unem uma área de conhecimento e uma formação técnica. Cada uma dessas opções de Aprofundamento Curricular será composta por seis Unidades Curriculares com duração de um semestre cada, correspondendo aos três anos do Ensino Médio. Cada Unidade Curricular é composta por Componentes Curriculares que, para a surpresa de todos, não são os já conhecidos e tradicionais, como Língua Portuguesa, Matemática, Biologia, História, etc., mas novos componentes que congregam conhecimentos de mais de uma disciplina, quase sempre organizados sob um caráter pragmático e utilitarista que deverão ser desenvolvidos em 2 aulas semanais por professores das áreas abrangidas pelo componente. Nos exemplos de componentes que fazem parte do material de divulgação da rede constam, até agora, coisas como “Laboratório de produção jornalística”, “Aspectos socioculturais da Alimentação”, etc. Ou seja, pode ser que em um determinado semestre, no lugar de duas aulas semanais de Língua Portuguesa, os estudantes tenham “Laboratório de produção jornalística” e, no lugar das aulas de Sociologia, “Aspectos Socioculturais da Alimentação”.

Assim, se a proposta inicial do Novo Ensino Médio já reduzia a formação dos estudantes com uma proposta de aprofundamento em uma área do conhecimento, privando os estudantes do conhecimento das demais áreas, a proposta paulista surpreende por reduzir ainda mais a formação oferecida, uma vez que os alunos não necessariamente terão aulas de disciplinas clássicas do currículo escolar, como Língua Portuguesa, Matemática, Biologia, História, etc., mas de um “guarda-chuva” com títulos atraentes e pouco claros - Laboratório de Produção Jornalística, Aspectos Socioculturais da Alimentação, etc. - que poderão reduzir o acesso ao conhecimento historicamente produzido.

E quanto aos professores? Além de terem sido privados do processo de discussão e elaboração da política, recebem agora um modelo de Ensino Médio extremamente formatado, prescrito e alheio a tudo o que estavam acostumados a fazer. Sem ter clareza do futuro, o professor deixa de atuar em uma disciplina e passa a ser professor de uma área do conhecimento, deixa de ensinar os conhecimentos historicamente produzidos pela sua área, reduzindo-os àqueles que na qual cabem de forma pragmática os Componentes Curriculares de cada Unidade Curricular. Isso sem contar todas as incertezas com relação ao processo de atribuição de aulas. Haverá aulas para todos os professores nesse Novo Ensino Médio? Como essas aulas serão atribuídas? Haverá tempo para preparar aulas com esses novos Componentes Curriculares? A introdução dessa perspectiva de organização curricular trará mudanças nas condições de trabalho, de forma a que os professores possam gozar de maior tempo junto aos pares para organizar aulas diferenciadas? Ou será que haverá o mesmo tempo para trabalhar conteúdos reduzidos de forma tradicional?

Para além dos questionamentos e problemas decorrentes das mudanças curriculares vinculadas às áreas do conhecimento, os denominados aprofundamentos que envolvem o ensino técnico assumem contornos ainda mais preocupantes. Apesar da informação passada aos estudantes pela rede estadual paulista ser a de que eles, ao escolher um desses aprofundamentos, poderiam ter certificação em curso técnico, criando a expectativa de que essa formação equivaleria às demais formações técnicas de nível médio oferecidas por escolas organizadas para tal, caso das ETECs, a proposta do Novo Ensino Médio paulista prevê uma formação bastante aligeirada, com carga horária reduzida, tanto no caso do Novotec Integrado quanto principalmente o Novotec Expresso. Assim, para o estudante que escolhe um desses itinerários, talvez grande parte daqueles que necessitam trabalhar para auxiliar no orçamento doméstico, a formação se torna ainda mais reduzida à medida que substitui os conhecimentos tradicionais por Componentes Curriculares como “Produzindo conteúdos e vídeos para mídias digitais”, “Como criar meu primeiro app em Java”.

Numa breve análise já é possível reconhecer que não se trata, portanto, de aprofundamentos curriculares, mas de uma aplicação de uma lógica perversa que reduz as possibilidades de uma formação ampla, geral e de qualidade, justamente para aqueles estudantes que só tem a escola pública como possibilidade de acessar patamares formativos mais elevados. O Novo Ensino Médio paulista contribui assim para aprofundar ainda mais a desigualdade social e a dualidade entre a formação destinada aos alunos das escolas públicas e aquela que se volta aos alunos das escolas privadas, especialmente de elite, uma vez que essas mesmo com a obrigatoriedade de se adequar à Lei n. 13.415/2017 e seus estudantes tenham que optar por um itinerário formativo de uma área do conhecimento específica, essa área do conhecimento certamente ainda será compreendida pelas disciplinas tradicionais que integram a área do conhecimento.